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Como estudar Direito Penal hoje?

O direito penal não pode mais ser visto com os olhares do passado. O direito penal do século XXI apresenta-se de maneira diversa do modelo penal construído na virada do século XIX e XX. Tem-se, hoje, nas palavras de SILVA SÁNCHEZ (2013, p. 36), uma verdadeira expansão do seu objeto, levando com que o direito penal preocupe-se com aquilo que, anteriormente, passou longe de seus olhos.

Alguns fatores mostraram-se cruciais à virada dogmática sofrida pela ciência penal, dentre eles impende destacar a sensibilização social aos riscos do desenvolvimento.

O direito penal do século passado ainda movia-se sob os auspícios do espírito inventivo do ser humano, paradigma filosófico que dominou as decisões humanas durante quase todo o século XX. O ser humano realmente acreditava que podia domar os percalços da natureza, depositando na razão técnico-instrumental todas suas esperanças e expectativas, a ponto de crer que não existiriam motivos para preocupação com o futuro, pois a ciência – saber essencial da humanidade até então – apenas avançava e os sentimentos de conforto e segurança chegavam às pessoas por meio dos inventos tecnológicos.

Esse universo, descrito como primeira modernidade, caracterizava-se pelo universo do homem consigo mesmo – o auge do egocentrismo humano – no qual se acreditava que o homem bastava por si mesmo, não dependendo dos demais que o cercavam. Era o humano cartesiano, cuja única prova de existência residia em sua capacidade de pensar e que não reconhecia no outro a sua existência – sendo sua língua privativa, sem qualquer pretensão de publicidade.

É nesse período, aliás, que o próprio conceito de confiança se altera. A confiança não recai mais sobre as pessoas, como era comum num período medievo, no qual a confiança era depositada naquele que detinha o conhecimento. Ao contrário, a confiança passou a residir no próprio objeto fruto do conhecimento, sem mais existir a necessidade de se reconhecer quem foi o responsável pelo mesmo – o que seriam os Sistemas Peritos.

Segundo ANTHONY GIDDENS (1991, p. 35), os Sistemas Peritos permitiram à humanidade confiar nos objetos que utilizavam sem mais precisarem conhecer seus inventores. As “coisas” passaram a ser detentoras de um caldo de conhecimento histórico que nos permitiram confiar em seu perfeito funcionamento – não precisamos perguntar quem foram os responsáveis pela construção de determinada aeronave para sentirem-se seguros ao realizaram a ponte aérea Curitiba-São Paulo, por exemplo.

Nesse contexto, o direito penal preocupou-se em maior medida com bens individuais, não sendo passível de proteção, por exemplo, determinados bens “sem dono”, como meio ambiente, ordem tributária ou falhas de produtos. O que realmente interessava ao direito penal era atuar sobre o indivíduo determinado que prejudicasse outro indivíduo determinado, a verdadeira direção da política criminal era no sentido de conter condutas que trouxessem lesões concretas aos sujeitos, não sendo uma preocupação os riscos advindos da produção do saber, pois tal saber não poderia atingir a esfera de proteção do ser humano, mas tão somente ampliá-la – a propósito, nesse período é curioso notar que o crime de homicídio doloso era o exemplo básico para explicar-se a maior parte dos delitos tipificados na parte especial do Código Penal.

Porém, não se tem mais como ver o mundo na forma estabelecida outrora.

O que se tem hodiernamente é um processo expansivo do direito penal, muito bem descrito por SILVA SANCHÉZ (2013, p. 38-39), pelo qual passaram a integrar a agenda da ciência penal novos bens jurídicos, muitos deles ligados a interesses que transcendem ao indivíduo e visam conter a sensação de insegurança instalada em razão de decisões que distribuem riscos do desenvolvimento tecnológico.

ULRICH BECK (2010, p. 25) assevera que o mundo atual caracteriza-se pela intensa sensibilidade aos riscos tecnológicos. Aquela fé depositada na razão instrumental deixou de persistir e a humanidade passou a temer pelo seu próprio destino a partir do intenso desenvolvimento tecnológico alcançado.

Em verdade, os efeitos tecnológicos passaram a refletir na humanidade, assim como a luz reflete no espelho (veja-se que o avanço tecnológico trouxe consigo diversas catástrofes, v.g., “Caso Samarco”, “Cubatão” e “Chernobyl”). Tanto é assim que, não é para menos, BECK (2010, p. 24) refere-se ao fenômeno vivido na atualidade como modernidade reflexiva.

Claro que não somente pela reflexão dos efeitos da tecnologia, mas também porque a percepção dos riscos leva o homem a refletir sobre a possibilidade de confiar no desenvolvimento a todo custo.

Todo novo saber que se instala, traz junto de si um novo conjunto de não saberes, gerando a incerteza e a insegurança (BECK, 2010, p. 67) – quantos de nós conseguimos comer uma folha de alface sem imaginar que por trás dela podem existir toneladas de produtos químicos prejudiciais? Quantos de nós podemos afirmar, com segurança, que transgênicos são benéficos ou prejudiciais?

Note-se que diversos avanços científicos trouxeram novas incertezas.

O interessante do fenômeno da modernidade reflexiva é que, ao contrário de outros períodos vividos na história, essa modernidade reflexiva não veio como substituta da primeira modernidade, mas como consequência direta de seu projeto – a modernidade não suplantou a modernidade (GIDDENS, 1991, p. 54-55).

Mas a pergunta é: o que tudo isso tem a ver com o direito penal atual?

Pois bem, a percepção e sensibilidade aos riscos cada vez mais acentuados fizeram com que os mesmos passassem a assumir o papel principal da tomada de decisões, o que inclui a feitura da política criminal.

É com a chamada sociedade de riscos (SILVEIRA, 2006 p. 48-50), por exemplo, que ocorre a profusão dos tipos de perigo abstrato, cuja fundamentação, aliás, é no sentido de antecipar os riscos, incriminando condutas que o distribuem sem preocupar-se com os resultados em concreto.

Outrossim, a nova constituição social traz a necessidade de novos estudos acercas dos princípios basilares do direito penal.

Com relação ao princípio da lesividade, por exemplo, temos o atual fenômeno dos delitos por acumulação – os quais, se considerados individualmente, não apresentam uma lesão significativa, mas, se considerados no âmbito coletivo, a acumulação das condutas gera graves consequências (vide o claro exemplo dos crimes ambientais, qual o impacto de uma garrafa no rio? E qual é o impacto de cem garrafas no rio?).

No direito penal atual, em grande medida, também persiste o fenômeno da “administrativização” (SILVA SÁNCHEZ, 2013, p. 148), por meio do qual o direito penal assume o papel do direito administrativo, gerindo setores sociais (caso da economia, meio ambiente, ordem tributária etc.).

Outro ponto de destaque está na nova feição dos sujeitos ativos dos crimes. Na segunda modernidade os maiores violadores de bens jurídicos supraindividuais não são homens, mas empresas, entes coletivos. Da mesma forma, os delitos passam a ser construídos sob o prisma do delito de omissão imprópria, no qual o executor não é necessariamente o responsável pela conduta criminosa, mas, sim, o seu superior, responsável pela supervisão.

Isso tudo sem mencionar o novo fenômeno do Compliance.

Portanto, temos que rever o direito penal que ensinamos nos bancos universitários.

O fenômeno penal não pode mais ser tratado somente sob o aspecto do crime individualizado, contra bens jurídicos inerentes aos seres humanos individualmente considerados. O crime de homicídio, por exemplo, não pode mais ser o parâmetro de estudo dos crimes em espécie, bem como nossos estudos clássicos da Parte Geral já não são mais suficientes para a completa compreensão do direito penal atual. É preciso mais, é preciso atualizar nossa compreensão do mundo moderno e seus reflexos no fenômeno penal.


REFERÊNCIAS 

BECK, Ulrich. Sociedade de risco: rumo a uma outra modernidade. São Paulo: Editora 34, 2010.

GIDDENS, Anthony. As consequências da modernidade. Tradução de Raul Fiker. São Paulo: UNESP, 1991.

SILVA SÁNCHEZ, Jésus-Maria. A expansão do direito penal: aspectos da política criminal nas sociedades pós-industriais. Tradução de Luiz Otavio de Oliveira Rocha. 3. ed. rev. e. atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013.

SILVEIRA, Renato de Mello Jorge. Direito penal econômico como direito penal de perigo. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006.

Autor: Douglas Rodrigues da Silva

Fonte: https://canalcienciascriminais.com.br/

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