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A Culpa da Coisa

Executivo apontando o dedo indicador.

A Culpa da Coisa. Para escapar da responsabilidade, o ser humano é capaz de dispor dos mais variados discursos, por exemplo, os que procuram transferir ao seu semelhante os resultados advindos dos seus próprios atos.

Entretanto, o que merece uma reflexão mais aprofundada é a tendência, ainda mais em voga, de culpar objetos inanimados, seres abstratos ou simples ideais dos mais variados campos do conhecimento.

Nos debates travados pelos nossos representantes no Congresso Nacional sobre o projeto que deu origem à atual Lei Ambiental (Lei 9.605/1998), a principal questão em foco era a criação de mecanismos para inibir o desmatamento desenfreado das nossas florestas em função da extração clandestina de madeira de lei e de outras terminantemente proibidas para fins industriais.

Os parlamentares mais letrados, compreendendo aqueles que, ao menos, tiveram o privilégio de cursar com assiduidade o ensino fundamental, apontaram uma série de fatores que fomentavam as práticas de extrativismo predatório, entre eles a corrupção endêmica na administração pública, colocando o Brasil na posição de subordinação aos interesses das empresas transnacionais, que favorecem o latifúndio e promovem o desemprego, e, por conseguinte, a miséria e a fome no campo.

Em contrapartida, acabou prevalecendo a teoria de que a causadora da destruição das árvores era da venda indiscriminada dos apetrechos destinados ao corte. Em suma, culpabilizou-se a serra elétrica, mas não o usuário motivado por sérios aspectos de ordem política, econômica e cultural. O tipo penal exposto no art. 51 do referido diploma legal sedimentou o entendimento: a culpa é da motosserra.

Fato semelhante ocorreu por ocasião da edição da Lei 10.826/2003, denominada Estatuto do Desarmamento. Como sempre, havia a necessidade de encontrar um culpado pelo número exacerbado de assassinatos por perfuração causada por arma de fogo, que, no Brasil, supera os índices verificados em países como aqueles que se mantém em situação de guerra declarada.

Não obstante a consulta popular tivesse preservado o direito à fabricação e comercialização de material bélico, é notório o enrijecimento da legislação no que diz respeito à posse e, mais ainda, ao quase impossível porte de arma. Mais uma vez, o olhar voltou-se para o objeto e não para quem o manuseia.

Desse modo, foi escamoteada a cultura extremamente violenta de um povo apresentado pelos meios de comunicação, de forma distorcida, é claro, como alegre e hospitaleiro.

Basta observar o relatório divulgado pela UNODC (Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime) em 2007, segundo o qual se foi estimado que 15 milhões de armas de fogo estivessem em posse da população brasileira, enquanto outros 270 milhões nas mãos dos cidadãos norte-americanos.

Todavia, ao contrário do que possa parecer, o Brasil supera em 3,7 o número de mortes por arma de fogo registrado nos Estados Unidos. Em que pese a triste constatação, mesmo assim a culpa continua sendo do revólver, da pistola, do fuzil, da munição e acessórios.

Atualmente, a celeuma volta a ganhar destaque com a pretensão do legislador brasileiro de extirpar o instituto do foro especial por prerrogativa de função.

Segundo os seus precursores, o fator determinante da impunidade está na norma constitucional que prevê o processo originário nos tribunais para aqueles que ocupam os mais altos escalões do governo. Garantem que a regra estaria em favor do corporativismo e da corrupção, em razão de propiciar ao acusado um julgamento pela cúpula do poder ao qual igualmente pertence.

A tese defendida surpreende mais do que aquelas anteriormente abordadas, que serviram de pano de fundo para as leis ambiental e de armas, em função da incrível superficialidade com que se enfrenta um problema desse grau de complexidade, que é a benevolência com o crime ou com o criminoso.

A prerrogativa de função nunca foi um instituto exclusivo da legislação pátria. Aderida por diversos países de primeiro mundo, difundiu-se pelo planeta com a perspectiva, ao menos no campo teórico, de se preservar, prima face, a hierarquia dentro da administração pública, e no seu âmago, a garantia de um julgamento por órgão superior que se encontre em posição confortável e independente para a realização de um julgamento imparcial pelos seus membros, que não teriam motivos para se intimidar diante de possíveis pressões externas ou até mesmo pela magnitude do evento.

Se porventura, o instituto foi distorcido em determinadas regiões para atender a interesses escusos, há de se por em pauta de que forma os réus poderiam alcançar tais objetivos, a fim de que o poder público institua os respectivos mecanismos de prevenção. Todavia, revogar a o mandamento da Carta Magna seria apenas mais uma faceta do discurso demagógico, deveras reconhecido pela historiografia brasileira.

Quando alguém afirma que o motivo pelo qual um deputado federal não ser condenado deve-se ao foro por prerrogativa de função, implicitamente não somente acusa a Suprema Corte de ter se degenerado moralmente, como também parte de uma presunção quase que absoluta de que os magistrados de primeira instância estariam imunes às fraquezas inerentes ao homem, que fazem muitas vezes ceder às tentações que levam à corrupção.

Dispensa-se mais delongas para provar o caráter infanto-juvenil de ambas as concepções. E ainda que entendêssemos como irrefutável o ideal de que as decisões proferidas pelos juízes de primeiro grau seriam as que verdadeiramente promoveriam justiça, não haveria como ignorar que, ainda assim, poderiam ser revistas e reformadas pelos tribunais superiores, ou será que quando se derem conta disso irão se voltar contra o princípio do duplo grau de jurisdição ou, talvez, contra os recursos especial ou extraordinário?

O fato é que, se a projeto de emenda constitucional for aprovado e sancionado, iremos ratificar o método em comento: a culpa é da prerrogativa de função.

Ainda estamos distantes do tempo em que se formará o senso comum de que a coisa está a serviço da sociedade e sempre servirá de instrumento para qualquer fim, independente de algum tipo de valoração, que estará exclusivamente na consciência do homem.

Entreguem uma motosserra a uma pessoa de bem, e ela irá podar as árvores do quintal para que floresçam na primavera; uma arma para ao cidadão de boa índole e ele, se não a recusar, guardará em local seguro para que as crianças não tenham acesso e só pensará em usá-la em legítima defesa própria ou de terceiros; institua a prerrogativa de função em um país onde impere o Estado de Direito, bem como o espírito republicano, e o usarão para um julgamento justo.

Em vez de marginalizar a coisa, deve a humanidade combater determinados impulsos que são da sua própria natureza, pois, de acordo com a filosofia de Hobbes, em O Leviatã, o homem é o predador de si mesmo. E o projeto a ser realizado para se alcançar a utopia da construção de um país civilizado de maioria esclarecida começa, não pela edificação de escolas (coisa), mas sim pela construção do indivíduo.

Autor: Sergio Ricardo do Amaral Gurgel

Fonte e imagem: https://canalcienciascriminais.com.br/

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