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Direito Penal e retórica de contenção do poder punitivo

Homem chicotendo outro homem preso em um madeiro em formato de cruz.
Nós, que lutamos contra a ditadura militar, devemos encarar o fato que a democracia que ajudamos a construir tortura e mata mais do que o ciclo militar. - Vera Malaguti Batista

Como resumiu o abolicionista AUGUSTO (2018) em escrito (prefácio) recente, o Direito é o mundo da retórica; e o conteúdo deste primeiro artigo de estreia como colunista no Canal Ciências Criminais, explicita contradições bastante básicas do discurso jurídico-penal (notadamente presentes mesmo, ou sobretudo, em suas forças “progressistas”, como se observa exemplificativamente nas fissuras da criminologia zaffaroniana).

Com percursos distintos, ressoa em percepções bastante similares, da prisão como uma poderosa política para muito além de um edifício (política que precisa ser dissolvida com urgência no presente); conteúdo sublinhado com AUGUSTO (2010, 2013), e tensionado nas perspectivas contra o princípio da autoridade e da punição (CORDEIRO; PIRES, 2017b) dentre outros escritos.

Se depreende dos discursos jurídicos, bem como da leitura de seus inúmeros penalistas famosos, o vislumbre de produções paternalistas que retoricamente invocam camadas de imprescindibilidade conectadas ao Direito Penal, nele vinculando alguma sorte de racionalidade útil acerca da contenção do poder punitivo; “contenção” ao poder apresentada como benéfica e necessária, e que por sua vez representa assimetricamente seus artífices e entusiastas.

Nessa direção sacralizada pelos que não abrem mão da prisão como uma poderosa política, negociando e vendendo direcionamentos minimalistas (que operam em sentidos distintos dos conjecturados pelos especialistas e técnicos em humanidades dos discursos de contenção), pairam os cinismos irremediáveis dos discursos legitimantes bombardeados pelos poderes estabelecidos e suas extensões (abarcando os que disputam as cadeiras de suas instituições).

O Direito Penal, produto atrelado ao “sequestro do conflito” (característico do poder punitivo, sua dinâmica e linguagem-crime) é vendido como fruto de uma transição lógica e racional, de um suposto estágio de descontrole para um estágio controlado / bem governado (supostamente em nome das próprias pessoas, os “cidadãos”).

Produto refletor, como apresentado, de uma tentativa (política) de incidir sobre o dito descontrole e a conflitividade, com regras e contenções supostamente bem-vindas, não desde a boca de fascistas e autoritários (como frequentemente inferido por esquerdas), mas dos bem intencionados reformistas e atores de toda sorte, cujas movimentações, sobretudo na atualidade das sociedades de controle (PIRES, 2018), compõem, com enorme força, entre aprisionamentos e monitoramentos, os redimensionamentos que ampliam a prisão como poderosa política, que abarca uma imaginação punitiva, o cidadão-polícia de Acácio Augusto, ou nos termos de NEVES (2016, 2018) uma sensibilidade punitiva, de modo que, como ressalta RESENDE (2017, 2018) em abolicionismos e sociedades de controle, existem conexões entre micropolítica e macropolítica; e esse caldeirão de elementos tóxicos que nos parasitam (e ativam encarceramentos) é energizado pelos que bebem (e participam) dos fluxos lanceados.

Os bombardeados por esses fluxos, sobretudo os que se localizam com orgulho nesses referenciais lanceados, até se convencendo de que constituem alguma espécie de contrapoder imprescindível / necessário, reiteradamente compram e disseminam discursos com essas etiquetas (alguns sem ressalvas); uma etiqueta absurdamente inflada pelas doutrinas do contrato que tanto penetram e habitam os discursos jurídicos, e sabidamente o Direito Penal, atrelado à ideia de contenção / regulação do descontrole, ensinado nas disciplinas, livros, cursos de “Direito Penal Constitucional”, “Direito Penal Democrático” etc.

O âmbito jurídico, esse mundo da retórica como frisado por Acácio Augusto, que é elevado, no âmbito jurídico-penal, à condição discursiva “contencionista” (ainda que enquanto dever-ser), tece diariamente doutrinas legitimantes e absolutamente funcionais à perpetuação e expansão das prisões como poderosa política, acastelados em um autoproclamado contrapoder que ignora sua condição real de poder.

Pairamos no absurdo de entusiastas do Direito Penal incapazes de vislumbrar a brutal contradição em termos, da promessa de conter o poder punitivo, ignorando como todo o encarceramento supostamente combatido é exercido de forma colossalmente legitimada pela cumplicidade desse ente que simula condição de contrapoder ocultando ser, ele próprio, integrante ativo dos aprisionamentos, tortura e destruição de seres humanos engaiolados e destituídos de praticamente tudo.

O Direito Penal, tão sabidamente banhado nas ressonâncias das doutrinas do contrato e imerso nas batalhas das dicotomias rasas de front (falsas dicotomias que acreditam se combater), como nominei em texto continuado por Fernando Henrique Cardoso Neves em 2016 (PIRES; CORDEIRO, 2017b), contempla, nessas ondas progressistas, integrantes fieis à perpetuação e aprimoramento dos controles (com selo de contenção), eternizando políticas repressivas e simulando resistências, ficções retóricas atreladas à continuidade dos horrores da prisão como política, não se apartando da governamentalidade (ÁVILA, 2017).

Muitos atores progressistas do sistema de justiça criminal simulam uma humanista teoria retórica do contrapoder, “sofisticada”, absolutamente capturada, incapaz de ampliar horizontes abolicionistas no presente das sociedades de controle.

Simulam, divisões purificadoras absolutamente cínicas em seus usos (exemplificativamente, Estado de Direito versus Estado Policial), integrantes de falsos duelos e falsas saídas; saídas que em realidade são entradas (PIRES, 2018).

Aos que pretendem beber um conteúdo verdadeiramente Anti-Hobbes, deslegitimante do sistema de justiça criminal, recomendo fortemente fecharem as páginas da retórica político-jurídica do contrapoder prometido, e começarem a pensar em algo há muito tensionado nas histórias dos pensamentos libertários: ao invés simular um contrapoder, conjecturar o não-poder, dinamitando o princípio da autoridade e da punição, sistemas de castigos e recompensas, razão de Estado e razão de governo em sentido amplo; elementos dissolvidos em uma teoria / prática do (não) poder de cunho abolicionista.

As armadilhas da representação e participação, do empoderamento cool que almeja integrar e escalar as paredes dos fluxos repressivos para se cristalizar numa cadeira ante a promessa de bons redesenhos e reformas, integram fortemente, não as sublimes soluções, mas os terríveis problemas na atualidade das sociedades de controle (ou como se nomine); problemas ampliados pelos soldados obedientes aos fluxos repressivos, os absorvidos e partícipes em seus direcionamentos.

A atualidade de pensadores como Edson Passetti (Brasil) e Christian Ferrer (Argentina), bem como as novas gerações que já respiram contra esse estupor de participação nos fluxos repressivos, são obrigadas a encarar criticamente também as “saídas” progressistas que em verdade são entradas funcionais à ampliação do circuito prisional, redimensionando problemas.

Os pensadores contemporâneos mencionados desnudam não apenas o senso comum criminológico (como muitos antipenalistas / criminólogos), mas também o senso comum democrático, integrante, mais do que nunca, da perpetuação da linguagem criminal e da prisão, essa política cuja abolição urgente é adiada, eternizada, refém do retórico timingdas utopias consoladoras etapistas.


REFERÊNCIAS

AUGUSTO, Acácio. Prefácio. In: PIRES, Guilherme Moreira. Abolicionismos e Sociedades de Controle: entre aprisionamentos e monitoramentos. Florianópolis: Habitus, 2018.

AUGUSTO, Acácio. Política e polícia: Cuidados, controles e penalizações de jovens.Rio de Janeiro: Lamparina Editora, 2013.

AUGUSTO, Acácio. Para além da prisão-prédio: as periferias como campo de concentração a céu aberto. In: ABRAMOVAY, Pedro Vieira; BATISTA, Vera Malaguti (Organizadores). Depois do Grande Encarceramento. Rio de Janeiro: Revan, 2010.

ÁVILA, Gustavo Noronha de. Prefácio. In: CORDEIRO, Patrícia; PIRES, Guilherme Moreira. Política, Sociedade e Castigos: Ensaios libertários contra o princípio da autoridade e da punição. Florianópolis: Editora Habitus, 2017.

CORDEIRO, Patrícia; PIRES, Guilherme Moreira. Política, Sociedade e Castigos: Ensaios libertários contra o princípio da autoridade e da punição. Florianópolis: Habitus, 2017a.

NEVES, Fernando Henrique Cardoso. Prólogo. In: PIRES, Guilherme Moreira. Abolicionismos e Sociedades de Controle: entre aprisionamentos e monitoramentos. Florianópolis: Editora Habitus, 2018.

NEVES, Fernando Henrique Cardoso. Sensibilidade punitiva e a formação jurídico-penal: uma análise empírica. Confluências – Revista Interdisciplinar de Sociologia e Direito, Vol. 17, nº 2, 2016. pp. 117-134.

PIRES, Guilherme Moreira. Abolicionismos e Sociedades de Controle: entre aprisionamentos e monitoramentos. Florianópolis: Habitus, 2018.

RESENDE, Paulo Edgar da Rocha. Introdução à vida não punitiva (Posfácio). In: CORDEIRO, Patrícia; PIRES, Guilherme Moreira. Abolicionismos e Cultura Libertária: inflexões e reflexões sobre Estado, democracia, linguagem, delito, ideologia e poder.Florianópolis: Empório do Direito, 2017b.

RESENDE, Paulo Edgar da Rocha. Epílogo I: Punitivismo Narcisista e o Racismo de Estado. In: PIRES, Guilherme Moreira. Abolicionismos e Sociedades de Controle: entre aprisionamentos e monitoramentos. Florianópolis: Editora Habitus, 2018.

Autor: Guilherme Moreira Pires

Fonte e imagem: https://canalcienciascriminais.com.br/

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