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É possível retroagir à data do trânsito em julgado para evitar a prescrição?

Relógio retrocedido.

É possível retroagir à data do trânsito em julgado para evitar a prescrição? Bem, para a Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça sim. Antes de tudo, cabe relatar a situação. Enfim, o STJ, numa “malandragem processual” resolveu criar a figura do trânsito em julgado retroativo.

Funciona assim: a defesa, e somente ela, após resultado desfavorável em apelação, interpõe um recurso aos Tribunais Superiores (pode ser o STJ, por meio de Recurso Especial, ou STF, por meio de Recurso Extraordinário).

Como sabem, os dois recursos possuem duplo grau de admissibilidade, sendo primeiro analisados pelo Tribunal de Justiça (ou TRF) para depois ser novamente analisado pelo STJ ou STF, caso seja admitido pelo Tribunal de Segundo Grau.

Porém, é possível que o Tribunal de Justiça ou TRF neguem seguimento ou não conheçam o recurso manejado, o que autoriza a defesa interpor um agravo diretamente aos Tribunais Superiores, provocando-os a se manifestarem acerca da admissibilidade do recurso negado na origem.

Pode ser, contudo, que o Tribunal Superior compreenda também pela negativa de seguimento, o que ensejaria no trânsito em julgado da decisão.

Ocorre, todavia, que esse julgamento em agravo costuma demorar alguns anos, ultrapassando, seguramente, a casa dos dois anos, e muitos delitos prescreviam em razão da morosidade dos Tribunais Superiores –  que, convenhamos, estão longe de ter a mesma quantidade de trabalho da primeira instância).

Com isso, sabedores de sua própria lentidão, os Ministros do STJ de maneira inovadora resolveram retroagir a data do trânsito em julgado das decisões para o último recurso conhecido e julgado no mérito, que, geralmente era a apelação.

Consequentemente, esses vários anos em que o processo “dormiu” no gabinete de algum Ministro eram desconsiderados e, assim, adeus prescrição. Maravilhoso, não?

No entanto, isso é completamente ilegal e viola frontalmente a Constituição e o Direito como um todo. Vejamos a seguir. Como primeiro ponto desta sustentação, cabe aqui ressaltar que o instituto da prescrição tem sua razão de ser calcada numa orientação de política criminal revestida pelo manto da prevenção geral.

Ou seja, considerando o direito penal como instrumento cuja missão é incutir no acusado e no seio social a necessidade de se observar as regras impostas pela norma penal, prevenindo futuras violações, a prescrição atua como o tempo máximo pelo qual uma sanção irá repercutir sob o viés preventivo.

Em outras palavras, “o tempo a tudo cura”, o que, evidentemente, não seria diferente no direito penal.

Conforme PACELLI e CALLEGARI (2015, p. 575):

A pena pública traduz um juízo de indispensabilidade da intervenção estatal penal em determinadas situações; por isso mesmo, se presentes outras e específicas circunstâncias, a sua imposição poderá se demonstrar dispensável, desde que se possa concluir que com ela não se obteria resultado superior àquele obtido com sua não aplicação”.

Pois bem.

Ao cidadão não pode ser imposta a angustia de se ver na iminência de sofrer uma restrição em sua liberdade, ferindo seu direito de ir e vir, ad eternum.

Também por isso, o direito penal apresenta a figura da prescrição, para evitar que as falhas estruturais do Estado sejam jogadas sobre os ombros do débil, como se este fosse o culpado pelas mazelas estruturais do precário sistema de justiça brasileiro.

A espada de Têmis não pode permanecer para sempre apontada para a cabeça do réu.

E nem se argumente que a interposição de recursos é a responsável pelo decurso do tempo processual. É de se ressaltar que a defesa sempre possui prazo preclusivo para a interposição dos mesmos, os quais, em seu maior prazo, não ultrapassam quinze dias (juízes não têm prazo para julgar).

Na realidade, tal argumento representa a tentativa do Estado de compensar suas falhas usando o réu como instrumento, criando uma ficção jurídica a fim de retroagir o marco interruptivo da prescrição para não apagar os efeitos penais da condenação – e destaque-se que tal extinção da punibilidade quase sempre é consequência direta da morosidade no julgamento dos processos pelas instâncias superiores.

Cabe também argumentar que a tal retroatividade do trânsito em julgado é completamente indevida no que toca à própria redação da norma.

A lei penal requer apenas o julgamento do último recurso defensivo, não fazendo qualquer menção à necessidade de julgamento de mérito. O que se requer, pois, é o trânsito em julgado para a defesa, que somente se dá com o esgotamento de todas as vias recursais.

A prescrição para fins de contagem tem que levar em conta o último marco interruptivo, previsto no artigo 117 do Código Penal, que na hipótese aqui tratada é apenas e tão somente a certificação do trânsito em julgado pelo Tribunal Superior.

Nesse compasso, não há que se falar que para a definição do marco do trânsito em julgado da ação penal necessário retroagir até a data do julgamento do último recurso defensivo conhecido e julgado no mérito, pois, nem o Código Penal e tampouco qualquer outra lei fazem alusão a tal entendimento, que é insuficiente e incabível por não possuir respaldo legal. Outrossim, cabe recordar que, na dicção do § 1º, do artigo 110, do CP:

“A prescrição, depois da sentença condenatória com trânsito em julgado para a acusação ou depois de improvido seu recurso, regula-se pela pena aplicada, não podendo, em nenhuma hipótese, ter por termo inicial data anterior à da denúncia ou queixa”.

Noutros termos, ao se propor um Recurso Extraordinário, o réu ainda conta com a possibilidade real e concreta de ver sua situação penal minorada, o que apenas deixa de existir com a certificação do trânsito em julgado da decisão pela última instância que apreciou o recurso, mesmo que a decisão não conheça o recurso.

Somente com isso, com a denegação do recurso, que se pode falar em trânsito em julgado para a defesa.

Ademais, impende ressaltar que o regime dos recursos extraordinários, no qual estão compreendidos o Recurso Especial, ao STJ, e o Recurso Extraordinário, ao STF, seguem o mesmo procedimento tanto na seara cível, quanto na seara penal, e estão sujeitos aos mesmos pressupostos.

Assim, não se mostra adequado criar-se um critério de diferenciação dos momentos em que se observa o trânsito em julgado nas duas esferas, entendendo-se que o trânsito em julgado cível seja diferente do instituto no âmbito do processo penal.

A interpretação que compreende o trânsito em julgado como vinculado ao julgamento do mérito do último recurso interposto, além de indevida, culmina em inúmeros problemas na órbita da teoria geral do processo. Pensemos o caso da Ação Rescisória, por exemplo, cujo prazo é de dois anos após o trânsito em julgado.

Se pensarmos que o julgamento da admissibilidade do recurso extraordinário pelo Tribunal ad quem leve mais de dois anos e a Corte Superior mantenha a decisão de não admitir o recurso, o trânsito em julgado retroagirá a data do julgamento do mérito do último recurso, há mais de dois anos?

A parte perderá, então, o direito de ingressar com uma Ação Rescisória em virtude de uma ficção jurídica, amparada tão somente em posicionamentos de política institucional dos Tribunais Superiores?

Ainda, na hipótese da Ação Rescisória, teria sido melhor então a parte ter renunciado ao direito de recorrer aos Tribunais Superiores, guardiões das normas Constitucionais e Infraconstitucionais, para lançar mão de um mecanismo autônomo de impugnação – demandando a autuação de novo processo, novas manifestações e novos recursos?

E cabe notar que não estamos falando de recursos intempestivos, nos quais, de fato, não há que se falar em expectativas de alteração da decisão vergastada, mas de recursos apresentados em prazo adequado e sujeitos ao duplo juízo de admissibilidade.

Logo, mesmo que o Tribunal de piso realize juízo negativo de admissibilidade, nada impede que o Tribunal ad quem reforme tal decisão, o que, não raras vezes, pode ocorrer anos depois do posicionamento do Tribunal a quo.

Nessa situação, a decisão recorrida está longe de ser vista como imutável.

Ou seja, enquanto existir a possibilidade de se ingressar com recursos, todos aptos a alterar a decisão atacada, não se pode falar em trânsito em julgado – que somente se efetivará com o esgotamento das vias recursais, sem qualquer retroatividade.

Não se pode perder de vista que um dos efeitos do recurso é justamente obstar a formação da coisa julgada, impedindo a imutabilidade do decisum atacado.

Observe-se que mesmo o recurso inadmitido no Tribunal de Origem permite à defesa manejar outros meios recursais para impugnar tal decisão.

E se, ao final, o Tribunal Superior compreende pela não admissibilidade? Apagam-se todos os efeitos jurídicos gerados pelos recursos até então, dentre os quais o de impedir a formação de coisa julgada?

Indo além, não podemos deixar de destacar que a retroatividade do trânsito em julgado para a data de julgamento do mérito do último recurso interposto e admitido faz operar efeitos negativos em desfavor do réu num momento em que, constitucionalmente, ainda era considerado presumivelmente inocente.

Portanto, não se tem como sustentar uma retroatividade do marco interruptivo da prescrição, gerando-se efeitos contrários ao réu, a uma data na qual, pela letra “seca” do texto constitucional, ainda era presumidamente inocente.

Destarte, é completamente ilegal e flagrantemente contrária ao Texto Constitucional a medida adotada pelos Tribunais Superiores, com especial destaque ao STJ, de retroagir a data do trânsito em julgado para o momento no qual foi julgado no mérito o último recurso defensivo, desconsiderando os demais mecanismos recursais não conhecidos ou não admitidos.


REFERÊNCIAS

PACELLI, Eugênio; CALLEGARI, André. Manual de Direito Penal: parte geral. São Paulo: Atlas, 2015.

Autor: Douglas Rodrigues da Silva

Fonte: https://canalcienciascriminais.com.br/

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