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A insanidade do laudo de sanidade mental

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A insanidade do laudo de sanidade mental

Destino, acaso ou simples coincidência, fato é que iniciei o dia de hoje com a missão de cumprir duas diferentes tarefas: redigir a presente coluna e elaborar recurso de apelação em caso no qual fui nomeada defensora dativa.

A cada linha redigida no recurso de apelação, maior a convicção de que o tema da coluna não poderia ser outro. E é por isso que tomo a liberdade de deitar minha cabeça no seu ombro, almofadado leitor, e dividir a minha indignação.

Eis o caso: a denúncia atribui ao réu a prática do crime de estupro de vulnerável. Descreve a peça acusatória que o réu, em outubro de 2010, teria se aproveitado de um momento de distração dos pais de uma menina de sete anos de idade para, no interior da residência da família, mostrar-lhe o órgão genital e beijar-lhe a boca.

A defesa do denunciado foi inicialmente realizada pela Defensoria Pública. A resposta à acusação se restringiu à usual negativa genérica e não foram arroladas testemunhas de defesa.

O magistrado, então, designou audiência de instrução para fevereiro de 2015. Chegada a data da audiência, foram ouvidas as testemunhas de acusação e realizado o interrogatório do acusado, que não demonstrava noção exata da realidade, nem tampouco linha lógica de raciocínio.

Na mesma ocasião, a Defensoria Pública requereu a juntada de documentação que indicava a existência de doença mental do acusado: laudos revelavam que esse era acompanhado por psiquiatras e psicólogos desde 2008.

Instaurou-se, assim, incidente de sanidade mental para verificar as condições mentais do denunciado, uma vez que o art. 26 do Código Penal adota o critério biopsicológico[1] e determina que “é isento de pena o agente que, por doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado era, ao tempo da ação ou omissão, inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento” (FILHO, 2000, p. 61).

Foi o exame pautado para realização em 29.12.2016.

Cabe aqui um primeiro questionamento: como é possível a verificação da (in)capacidade de entendimento ou determinação do agente ao tempo da ação através de exame realizado mais de seis anos depois do crime? Há como realizar uma verificação de capacidade mental retroativa?

Na tarde do dia designado, um psiquiatra foi encarregado de entrevistar o réu. Foi o suficiente para que o examinador – desprezando os laudos médicos constantes dos autos, os quais foram elaborados em datas mais próximas ao fato criminoso – concluísse pela imputabilidade do réu.

Eis o segundo questionamento: é possível que, em uma tarde de entrevista, um único psiquiatra[3] conclua, extreme de dúvida a ponto de (con)firmar em laudo, que o réu era inteiramente capaz de entender o caráter ilícito ou de determinar-se conforme esse entendimento, seis anos antes?

Mas não foi apenas isso que o psiquiatra concluiu.

Além de responder positivamente ao quesito formulado, garantindo que o acusado era imputável à época do crime (não obstante na entrevista esse não soubesse informar com precisão a data de nascimento, o número de irmãos que possui, as profissões que teve e nem tampouco a data do casamento…), registrou que “o acusado percebe seu pênis como pequeno, o que lhe traz insegurança. Tal sentimento de inferioridade sexual o leva à procura de ‘infante feminina’, que não questionará o tamanho do seu órgão”.

Inevitável o terceiro questionamento: pode, em uma única tarde de entrevista, o psiquiatra concluir pela existência do crime – incorporando o papel do julgador -, inclusive explicando psicanaliticamente as razões que conduziram o autor à prática criminosa?

Pois foi diante desse cenário – e nesse momento processual – que fui nomeada defensora dativa do réu. Questionei a validade do laudo. O magistrado, em uma linha, rejeitou os argumentos afirmando que “a conclusão do perito não vincula o julgador” (art. 182, do CPP).

Quarto questionamento: o fato da conclusão do perito não vincular o julgador significa, então, que o laudo pode ser realizado de todo e qualquer modo, ingressando indevidamente no mérito, inclusive?

Diante da conclusão do incidente de sanidade mental, foi determinada a apresentação das alegações finais na ação penal e, na sequência, foi prolatada a sentença – aquela, que não estava vinculada à conclusão do laudo.

Dez anos e dois meses em regime inicial fechado foi a pena imposta ao réu. Foi afastada a inimputabilidade (e também a semi-imputabilidade), adivinhe sob qual fundamento? A conclusão do laudo.

E é por isso que se impõe um último e principal questionamento: não seria prudente instaurar incidente para verificar a sanidade do nosso sistema de justiça?


NOTAS

[1] Também a jurisprudência evidencia a adoção do critério biopsicológico. No STJ, HC 55230/RJ, o Relator Min. Felix Fischer aduziu expressamente que “assim, não basta simplesmente que o agente padeça de alguma enfermidade mental (critério biológico), faz-se mister, ainda, que exista prova (v.g. perícia) de que este transtorno realmente afetou a capacidade de compreensão do caráter ilício do fato (requisito intelectual) ou de determinação segundo esse conhecimento (requisito volitivo) à época do fato, i. e. no momento da ação criminosa.”

[2] Vale registrar, nesse ponto, a existência da súmula 361 do STF, cujo entendimento foi posteriormente e questionavelmente afastado quando se trata de “peritos oficiais”.


REFERÊNCIAS

FILHO, Fernando da Costa Tourinho. Processo Penal. 22. ed. vols. 1 e 2. São Paulo: Saraiva, 2000.

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Autor: Marion Bach

Fonte: https://canalcienciascriminais.com.br/

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