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O encarceramento feminino e os impactos no Estatuto da primeira infância

Mulher segurando grades.

Essa é uma publicação referente aos debates realizados na Comissão Especial de Estudos de Medidas Alternativas à Prisão, coordenada por mim, sendo que o tema da vez é o encarceramento feminino e o Estatuto da primeira infância, de autoria da integrante Gabriela Vizeu.

O estudo sobre o encarceramento feminino, absolutamente necessário ante ao crescimento dessa população, deve ter como premissa dois problemas sociais latentes na atualidade: a desigualdade de gênero e as anomalias de um sistema penitenciário que não tem se mostrado efetivo em seus propósitos de ressocialização.

Quando da junção de ambas disfunções surge uma terceira e mais complexa problemática, qual seja, um sistema penitenciário feminino machista que ignora as peculiaridades de gênero e, consequentemente, impõe às mulheres presas punições que vão muito além da privação de liberdade.

Segundo o último levantamento do Departamento Penitenciário Nacional, o Brasil tinha em 2014 a quinta maior população de mulheres presas do mundo. No período de 2000 a 2014 o aumento da população carcerária feminina foi de 567,4%, chegando ao patamar de 37.380 mulheres presas, enquanto a média de crescimento masculino, no mesmo período, foi de 220,20%. Se em 2000 as mulheres representavam 3,2% da população prisional, em 2014 elas passaram a representar 6,4% do total encarcerado.

A prevalência de certos perfis de mulheres no cárcere reflete e enfatiza o já conhecido perfil da população prisional em geral: em regra são mulheres jovens, pobres, negras ou pardas, de baixa escolaridade e condenadas por furto, roubo e tráfico de drogas. Além disso, tem-se como um dos maiores pontos de intersecção entre as mulheres encarceradas a maternidade, chegando ao patamar de 80% de mães presas no Brasil.

Nota-se, também, que parte considerável das presas no país são de caráter provisório, o que torna ainda mais violenta a atuação estatal e, consequentemente, mais vulnerável a permanência dessas mulheres no cárcere.

Nesse sentido, como meio de expandir as medidas menos encarceradoras para mulheres e principalmente visando proteger o melhor interesse da criança fora publicada em 8 de março de 2016, a Lei nº. 13.257/16, também chamada de Estatuto da Primeira Infância.

Segundo essa lei, considera-se como primeira infância os primeiros 72 meses de vida da criança e cabe ao Estado estabelecer princípios e diretrizes para a formulação e a implementação de políticas públicas para a primeira infância em atenção à especificidade e à importância dos primeiros anos de vida no desenvolvimento infantil e no desenvolvimento do ser humano.

Essa lei sinaliza a consolidação da proteção integral de crianças e adolescentes adotada no ordenamento jurídico pátrio, conferindo novas garantias a essas pessoas por meio de alterações na Consolidação das Leis do Trabalho, Estatuto da Criança e do Adolescente e no Código de Processo Penal.

No que tange ao Código de Processo Penal, uma das mudanças mais significativas trazidas pela referida Lei é a ampliação do rol de possibilidades de substituição da prisão preventiva por prisão domiciliar. Segundo a nova redação do artigo 318 do aludido Diploma Legal, será permitida tal substituição quando o agente for:

I – maior de 80 (oitenta) anos;

II – extremamente debilitado por motivo de doença grave;

III – imprescindível aos cuidados especiais de pessoa menor de 6 (seis) anos de idade ou com deficiência;

IV – gestante;

V – mulher com filho de até 12 (doze) anos de idade incompletos;

VI – homem, caso seja o único responsável pelos cuidados do filho de até 12 (doze) anos de idade incompletos. (BRASIL, Lei nº. 13.257, 2016)

Infere-se, portanto, que a prisão domiciliar poderá ser decretada independente de risco à saúde ou do período gestacional que se encontra a mulher, sendo suficiente que se comprove o estado de gravidez, ao contrário do que era previsto antes do Estatuto. Ademais, nota-se importante inovação trazida no inciso V, que também possibilita a mães com filhos de até 12 anos incompletos terem a oportunidade de acompanhar de perto a criação de seus filhos.

Busca-se, dessa forma, proteger a criança, absolutamente inocente, dos efeitos nocivos do cárcere, bem como oportunizar o seu crescimento sadio, com a presença materna, visto a imprescindibilidade da mãe nessa fase tão ímpar do desenvolvimento infantil.

Não há possibilidade de se imaginar que alguém já nasça presa, sendo responsabilizada por algo que não praticou, bem como suporte, desde a gestação/nascimento, todos as nefastas consequências que surgem com a prisão, ainda mais na atual situação brasileira.

Inclusive, a Constituição Federal, em seu artigo 5º, inciso LXV, estabelece o princípio da responsabilidade penal, ou seja, trouxe o direito fundamental de que “nenhuma pena passará da pessoa do condenado”.

Mas e a situação das gestantes e lactantes presas, será que nessas hipóteses as penas estão respeitando esse princípio ou estão diretamente atingindo, além das presas, os seus filhos? Infelizmente, a resposta, conforme mencionado acima, só pode ser positiva.

Ademais, não obstante a legítima preocupação dos legisladores e julgadores com as crianças até doze anos, é preciso destacar o fato de que a mulher presa também é um sujeito de direitos. Ao passo que crianças possuem o direito de crescerem em ambiente saudável e com o amparo materno, às mães também é resguardado o direito do exercício de uma maternidade digna.

Nota-se uma forte tendência legislativa em proteger a mulher como mãe e menosprezá-la enquanto ser humano passível de direitos. Embora haja uma íntima vinculação entre o direito de mãe e filho a uma maternidade e desenvolvimento sadios, não se pode perder de vista que esta garantia não diz respeito apenas ao melhor interesse da criança, mas também – e principalmente – à liberdade e dignidade da mulher presa, fato que por diversas vezes é ignorado pelo legislativo e pelo judiciário.

Nesse sentido, apesar dos inegáveis avanços (ao menos) no campo legislativo, é certo que a proteção da criança e da gestante/lactante ainda está longe de ser garantida pelo Judiciário, o qual, em muitas vezes, teima em não aplicar o que disposto na legislação, sob várias (e frágeis) justificativas, dentre elas a de que não restou comprovada a necessidade da presença da mãe junto ao filho; a de que a própria gestante/lactante não pensou em sua condição (de gestante/mãe) quando da prática criminosa; além de outras que demonstram a dificuldade de trazer pro mundo real aquilo que consta no mundo (teórico) das leis.

E mais uma vez a seletividade se faz presente, pois a conclusão (pela domiciliar ou manutenção da preventiva) muda quando também muda a pessoa da ré. Enquanto temos integrantes de classes sociais baixas no polo passivo, as decisões costumam ser quase sempre no sentido da manutenção da prisão preventiva; sendo que se o polo passivo é formado por pessoas de classes sociais mais altas, a conclusão é pela necessidade da domiciliar.

Com o fim de encerrar a discussão sobre o assunto e buscar dar mais efetividade às disposições legais, a 2ª Turma do STF concedeu habeas corpus coletivo (HC 143641) “para determinar a substituição da prisão preventiva por domiciliar de mulheres presas, em todo o território nacional, que sejam gestantes ou mães de crianças de até 12 anos ou de pessoas com deficiência, sem prejuízo da aplicação das medidas alternativas previstas no artigo 319 do Código de Processo Penal (CPP)” .

Por fim, é certo que o caminho ainda é longo e precisamos de muita luta e dedicação para assegurar o direito das crianças e das gestantes/lactantes, mas o Estatuto da Primeira Infância (Lei nº. 13.257/16), inegavelmente, trouxe consideráveis modificações para essa finalidade, cabendo a nós, operadores do Direito, fazer valer o que estabelecido na legislação.

Autor: Pedro Magalhães

Fonte: https://canalcienciascriminais.com.br/

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