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Otelo ou a paixão assassina

Divindades do inferno! Quando os diabos querem dar corpo aos mais nefandos crimes, celestial aparência lhes emprestam, tal como agora faço. (Shakespeare, Otelo – Ato II Cena III)

“Odeio o Mouro”, diz Iago. Odeia, ou ama?

Iago é a personagem central dessa trama de amor e ódio. A chave do assassinato de Desdêmona. O invejoso, o alcoviteiro, o mentiroso.

A intriga de Iago começa quando conta ao Senador Brabâncio, pai de Desdêmona, que sua filha fugiu com Otelo. Mais que uma fuga romântica, ou que uma questão racial, Iago sugere uma forte conotação sexual à relação da suposta donzela com o Mouro experiente.

Passada a “crise de Estado” (resolvida pelo Duque de Veneza), por conta desse rapto, o casal parte com um séquito para o Chipre, onde se travaria uma batalha contra os turcos.

Mal poderiam saber que por uma tempestade as embarcações seriam tão separadas a ponto de fazer Desdêmona chegar muito antes à ilha.

É o tempo necessário para a construção de toda a rede na qual se prenderá o casal, inexoravelmente.

Ciúme. Essa reação de temor, de medo sufocante, de ansiedade e desespero que mata tanto o sujeito ativo quanto o passivo do sentimento. Mata de angústia aquele que sente o ciúme; mata quem deu vazão ao ciúme.

É no ciúme que Iago faz repousar toda sua técnica, estratégia de resolução de seu próprio ciúme contra Cássio – nomeado tenente por Otelo, em preferência a ele próprio.

O ódio a Cássio e o amor (?) a Otelo faz com que Iago sobreponha a inocente, fidelíssima e sinceramente apaixonada Desdêmona. Sussurros reiterados de Iago a Otelo, quanto a um romance entre Cássio e Desdêmona – com requintes explícitos de relações as mais íntimas entre eles –, são “comprovados” por um lenço.

Mas Iago é extremamente inteligente, persuasivo, habilidoso e articulador. Sabe que Cássio, jovem tenente, bonito e muito desejado, pode ser capaz de despertar desconfianças quando conectado a uma jovem donzela.

Gerando embriaguez ao tenente e provocando (ou encomendando a Rodrigo) uma confusão, Otelo destitui Cássio de sua função. Iago, provocador de tal situação, convence Cássio a pedir a Desdêmona que rogue a seu marido a retomada do posto do tenente.

Cássio fala com Desdêmona e esta com Otelo. A rede está pronta! Falta apenas Iago dizer – e provar – a relação amorosa [inexistente] entre Cássio e Desdêmona.

Otelo não acredita. Mas é o lenço de linho – dado por Otelo a Desdêmona, e encontrado nos aposentos de Cássio – que comprova a “traição”.

Isso é reforçado por uma última conversa sórdida e sexualmente explícita entre Iago e Cássio, espreitada por Otelo, a quem Iago faz o Mouro pensar ser Desdêmona – quando em verdade é sobre a prostituta Bianca. Está definitivamente comprovada a traição!

Cólera. Desespero. Assassinato.

Otelo asfixia Desdêmona e, em seguida à comprovação de toda a trama perpetrada por Iago, apunhala-se. Morre Desdêmona, morre Otelo, Iago é preso.

Eis o drama tipicamente shakespereano.

Mas a ação que poderia ser julgada é o homicídio de Desdêmona, tendo Otelo como autor. A que seria o Mouro denunciado/pronunciado? E qual seria o seu argumento defensivo?

Parece certo que o “Ministério Público” qualificaria o homicídio pelo motivo torpe. Assim como parece certo que a defesa imputaria toda a responsabilidade a Iago, verdadeiro articulador do crime. Mas, também é certo, esse “julgamento” não é assim tão simples.

Otelo é o típico homicida passional. Seu descontrole emocional, comandante do assassinato de Desdêmona, essa impulsividade pretensamente justificada por uma traição amorosa, a rigor, não se encaixa nas benesses do privilégio (“violenta emoção, logo em seguida a injusta provocação da vítima”).

Não pode, igualmente, se limitar à qualificadora do motivo torpe.

É necessária a psicanálise como ferramenta de compreensão do “crime”.

De Freud a Marcuse, Eros e Thanatos explicam. O instinto de vida proporcionado pelo amor/paixão de uma belíssima donzela é transformado em instinto de morte ao “saber” que a amada se entrega a outro homem.

Rompe não a propriedade, mas a própria vida. Afinal, essas manifestações, das mais primitivas do ser humano, corroboram a própria sobrevivência do homem. Assim, se não Eros, Thanatos! A morte de Desdêmona é um retorno ao prazer renegado (pela suposta traição, devidamente “comprovada”), que não se operou pela vida.

Afinal, entre o casal nunca houve a consumação do casamento. A morte de Desdêmona é a vida de Otelo. Não se pode exigir outra conduta.

Maria Zaira Turchi, em As faces do amor em Otelo, contribui com uma apoteose incrível capaz de corroborar, e até melhor ilustrar, sob perspectiva psicanalítica, essa tese.

Partindo de George Bataille, quanto à ideia de “pequena morte” (o orgasmo), a autora resgata aquele instante em que Otelo ainda não tinha certeza da morte de Desdêmona – “pequena morte”.

Finalmente a consumação do casamento? E, com Stephen Greenblatt, a necrofilia de Otelo como solução para a consumação matrimonial: Desdêmona morta, Otelo a ama tornando irrelevante o adultério com Cássio, ou a conversa casta na dimensão espiritual do casal (Otelo e Desdêmona), revelando coerência para o ciúme.

Não há razão capaz de compreender o locus, às vezes deveras obscuro, das faces do amor. A tragédia é lógica!

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Autor: André Peixoto de Souza

Fonte: https://canalcienciascriminais.com.br/

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