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Princípio da insignificância e a Lei de Drogas: por que não?

Comprimidos brancos.

“O Direito Penal tem cheiro, cor, raça, classe social; enfim, há um grupo de escolhidos, sobre os quais haverá a manifestação da força do Estado.” (Rogério Greco, Direito Penal do Equilíbrio)

No estudo sistemático do Direito Penal, uma das primeiras coisas que aprendemos são os princípios, que a exemplo de alguns outros ramos do Direito, vem elencados, porém subdivididos entre princípios específicos e princípios constitucionais.

Na seara penal um princípio bastante relevante é o da insignificância (alguns o chamam de bagatela), trazido por CLAUS ROXIN e que, resumidamente, preceitua que “comportamentos que produzam lesões insignificantes aos bens jurídicos tutelados pela norma penal devem ser considerados irrelevantes” (ESTEFAM, 2010), com fundamento na finalidade de proteção subsidiária de bens jurídicos que move o Direito Penal.

Consolidou-se, em sede doutrinária – e jurisprudencial – que haveria conduta atípica, pela aplicação do princípio da insignificância, quando estivessem presentes os seguintes requisitos: (i) mínima ofensividade da conduta do agente; (ii) nenhuma periculosidade social da ação; (iii) reduzido grau de reprovabilidade do comportamento e (iv) inexpressividade da lesão jurídica provocada.

Frente a isso, não obstante a existência da indicação de requisitos minimamente objetivos e a aceitação unânime de sua aplicação, atualmente, subsunção dos casos concretos aos requisitos necessários para o reconhecimento da aplicação de tal princípio incitam discussões como a que fora travada recentemente entre a Defensoria Pública e o Superior Tribunal de Justiça, em relação à aplicabilidade ou não de tal princípio. Vejamos:

A Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) afastou o princípio da insignificância e, em decisão unânime, determinou o recebimento de denúncia por suposta prática de tráfico internacional em razão da importação clandestina de 14 sementes de maconha por remessa postal.

Segundo a denúncia do Ministério Público, o acusado importou as sementes da Holanda, ao preço de R$ 200, para cultivo em território nacional.

Em sede ordinária, a Justiça de São Paulo (que muitos apontam como conservadora) aplicou o princípio da insignificância e rejeitou a denúncia, por considerar que a quantidade de sementes apreendidas era pequena e que não havia perigo aos outros bens tutelados no crime de contrabando.

O STJ, por outro lado, em decisão monocrática do Ministro Jorge Mussi, nos autos de recurso especial, acolheu o recurso ministerial que pugnava pelo afastamento do princípio da insignificância, com o consequente recebimento da denúncia para o prosseguimento da ação penal.

A decisão do relator baseou-se no entendimento do STJ segundo o qual não se aplica a insignificância aos delitos de tráfico de drogas e uso de substância entorpecente, pois são crimes de perigo abstrato ou presumido, “sendo irrelevante para esse específico fim a quantidade apreendida”.

Apesar do agravo regimental interposto pela Defensoria Pública, a Quinta Turma, por unanimidade, entendeu por bem rejeitar os apelos do órgão defensivo e confirmar a decisão do relator, mantendo os fundamentos por ele arguidos. Já a Sexta Turma do STJ vinha decidindo neste sentido, entendendo que

 “o consumo de drogas ilícitas é proibido não apenas pelo mal que a substância faz ao usuário, mas, também, pelo perigo que este consumidor gera para a sociedade, ao estimular o narcotráfico e, consequentemente, diversos outros crimes”.

O STF, por seu turno, através de seu ministro relator, Gilmar Mendes, em sede de repercussão geral, no julgamento do Recurso Extraordinário (RE) n. 635.659/SP, relativo à constitucionalidade do artigo 28 da Lei n. 11.343/06, que tipifica o porte de drogas para consumo pessoal como infração penal, trouxe um entendimento que contrastou diametralmente ao externado pelo STJ ao dar provimento ao recurso extraordinário para declarar a inconstitucionalidade, sem redução de texto, desse dispositivo legal, exercendo ao controle de constitucionalidade da norma e afirmando que

“o tipo penal previsto no artigo 28 da Lei n. 11.343/06 viola o direito à privacidade e à intimidade, bem como os princípios da proporcionalidade, da ofensividade e da lesividade, haja vista que não ostenta aptidão para proteger os bens jurídicos declarados como tutelados, quais sejam, a saúde e a segurança públicas”.

Com isso, dois cenário são postos: um no STJ que, como vimos, nos casos em concreto, inaplica o princípio da bagatela quando o tipo sob análise é aquele previsto na Lei de Drogas, e, de outro, o do STF que, em sede de controle abstrato – dissociado dos elementos fáticos de um caso concreto – declara que não haveria óbice em se aplicar o princípio da insignificância nos casos da prática da infração tipificada no artigo 28 da Lei n. 11.343/06.

Ocorre que o cerne do embate verificado entre o STJ e o Ministro Relator do STF, Gilmar Mendes, está exatamente na (des)necessidade de comprovação da lesão ou do perigo de lesão ao bem jurídico nos tipo de perigo abstrato, entendendo o STJ que, em sede de crime de perigo abstrato, dispensável a comprovação da lesão ou do perigo de lesão ao bem jurídico, tornando-se irrelevante a análise dos vetores para a aplicação do princípio da insignificância, dispensando-se, em tais casos, a aferição da lesividade/ofensividade da conduta para a análise de sua tipicidade material; já para o Ministro do STF, Gilmar Mendes, relator do RE n. 635.659/SP,

 “as normas que tipificam crimes de perigo abstrato não podem escapar ao controle de constitucionalidade, por meio do qual se analisa, ainda que sob contornos abstratos, a lesividade/ofensividade da conduta descrita na norma e a proporcionalidade da tipificação penal, com base na aptidão de afetação do bem jurídico tutelado e de efetiva proteção pela criminalização da conduta”, sob pena de se conceder “poderes irrestritos ao legislador para tipificar como crimes condutas desprovidas de periculosidade, em desatenção ao papel subsidiário do direito penal no ordenamento pátrio”.

Nessa passada, não obstante esteja o julgamento do citado RE interrompido sob pedido de vistas do Ministro Teori Zavascki (falecido em janeiro de 2017 e substituído por Alexandre de Moraes), fica claro que há desencontro entre as decisões – e as visões – dos Tribunais Superiores brasileiros, o que causa insegurança jurídica e distorção da aplicabilidade de princípios basilares do ordenamento jurídicos aos casos sub judice.

Nesse passo, indagamos: por que não se consolidar a aplicação do referido princípio que, em sendo princípio – ou, nas palavras de Miguel Reale, “verdade fundante de um sistema” – deve ser observado em todos os casos, sem exceção – especialmente quando a própria norma não o excepciona?

Corroborando com GISELA AGUIAR WANDERLEY (2015), entendemos que “se houvesse análise cautelosa do preenchimento dos requisitos para a aferição da tipicidade material e para a aplicação do princípio da insignificância em cada caso concreto, com a necessária avaliação da lesividade e da ofensividade da conduta praticada pelo agente em face do bem jurídico tutelado pela norma incriminadora” não haveria embates dessa natureza e nem mesmo descompasso no âmago do sistema em temas de tão alta relevância.

Continua, a nosso ver, o STJ, “pisando na bola” e dando guarida a tipos legais que, de maneira contumaz, violam o direito à privacidade e à intimidade do indivíduo – que não se pode jamais esquecer – é a razão de ser do próprio Direito e mote orientador do Estado em seu papel de garantidor do ser humano contra as arbitrariedades e abusos perpetrados pelo próprio Estado-opressor.


REFERÊNCIAS

Afastada insignificância na importação de sementes de maconha pelo correio. STJ Notícias de 18/04/2017. Disponível AQUI. Acesso em 18/04/2017.

AgRg no REsp nº. 1.637.113/SP. Relator Min. Jorge Mussi. Disponível AQUI. Acesso em 18/04/2017.

Recurso em HC nº. 35.920/DF. Relator Min. Rogério Schietti Cruz. Disponível AQUI. Acesso em 18/04/2017.

WANDERLEY, Gisela Aguiar. O porte de drogas para consumo pessoal perante o STF: por que tanta agitação? Disponível AQUI.

Suspenso julgamento sobre porte de drogas para consumo próprio. Disponível AQUI.

ESTEFAM, André. Direito Penal. vol. 1. São Paulo: Saraiva, 2010.

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Autor: Dayane Fanti Tangerino

Fonte: https://canalcienciascriminais.com.br/

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