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Reflexões acerca da internacionalização do direito penal

Mapa com pontos interligados internacionalmente.

A Ação Penal 470 (vulgo “mensalão”) foi sem dúvida uma das mais paradigmáticas dentre as julgadas na última década em nosso país. Nem sempre por bons motivos. Um dos traços marcantes no modo como esta ação foi conduzida figura como arquétipo de uma tendência preocupante na esfera criminal: a internacionalização do direito penal.

Na análise dos argumentos utilizados para as condenações que se efetivaram salta aos olhos a tentativa de atender ao clamor popular, que via naquele julgamento a panaceia contra os males da corrupção.

Afim de legitimar as muitas violações aos Código Penal e a Constituição Federal os Ministros do STF criaram um “frankenstein” dogmático, formado pela tentativa de justaposição de nosso arcabouço jurídico penal com teorias em desenvolvimento em terras estrangeiras.

O resultado foi uma completa distorção de significado de longas discussões doutrinárias ocorridas além-mar, embutidas muitas vezes nos votos dos ministros sem guardar qualquer cuidado em relação ao conteúdo e ao contexto em que estavam sendo debatidas lá fora.

Para ficar com um exemplo apenas, ressalte-se o voto da Min. Rosa Weber quando, calcando uma de suas manifestações no julgamento em uma suposta abertura operada pela teoria do domínio do fato, disse que determinados agentes deveriam ser penalizados por uma “presunção relativa de autoria”, relacionada a posição ocupada por esses dentro das organizações acusadas como meio para prática de diversos delitos.

Recentemente assistindo a uma seção de julgamento de uma das varas criminais do TJ/PR pude notar os efeitos nefastos desencadeados por esta linha de argumentação.

Três advogados sustentaram oralmente suas pretensões de afastamento da responsabilização penal por crimes tributários, demonstrando a ausência de dolo ou até mesmo alegando a negativa de autoria com base nas provas produzidas. Os três foram rechaçados com ampla citação do “domínio do fato”.

A teoria foi citada como argumento de autoridade para definir que, no sentido dado a ela pelos desembargadores, se a pessoa ocupa uma posição de gerência em determinada empresa e não consegue provar (numa inversão inconstitucional do ônus, ou carga, probatória) que não tinha conhecimento (operacional) dos desvios que estavam ocorrendo responde objetivamente (e dolosamente) por sua “negligência”.

Se olharmos com cuidado estamos de fato aceitando a presunção antecipada de dolo, não apenas de autoria. Nem sequer se processa a negligência em sua acepção tradicional, fundamentadora da aplicação da sanção penal na modalidade dos crimes imprudentes (culposos).

Presume-se a participação (em alguma modalidade de autoria) e, já de quebra, o dolo.

Em muitos votos ouvi a expressão “não é razoável que [fulano] não soubesse do que se passava em sua empresa”. Isso valerá para todas as empresas? Independente se sua estrutura e modus operandi?[1] Fica claro o perigo.

Como se relaciona este exemplo de importação disforme de teorias estrangeiras com a internacionalização do direito penal?

Quando se fala em internacionalização do direito penal é preciso delimitar o conceito para evitar falsas percepções. De uma perspectiva pragmática ele seria melhor descrito como uma forma de imperialismo cultural ou como uma manifestação de neocolonialismo.

Esta tendência ora se passa através da “americanização” de teorias (corporate liability; sentency schemes) e políticas criminais (war on drugs; law and order; three strickes and you are out; you do adult crime – you do adult time) ora como desdobramento de um eurocentrismo cultural com os mesmos efeitos.

Exemplo típico da força deste movimento se viu na reação em cadeia ocorrida após os atentados em 11/09/2001, em que diversos países se viram constrangidos pelos EUA e pela ONU a adotar políticas de vigilância e a realizar alterações legislativas que demonstrassem apoio às ações que ficaram conhecidas como “guerra ao terror”.

Conforme se observa nesta perspectiva a internacionalização do direito penal não se realiza apenas através de mecanismos oficiais, como tratados, acordos e a criação de tribunais com competência multinacional.

Obviamente se podem levantar dados positivos quando se analisa esse movimento sob o viés concretizador de direitos e garantias fundamentais, pautado na vinculação interna de dispositivos legais supranacionais, como o Pacto de San Jose da Costa Rica.

Também podem ser percebidos benefícios no diálogo entre doutrinadores de diversos países, já que muito do que acaba positivado nos códigos penal e processual penal (vide a parte geral dos CP) retrata um bom nível de consenso no que diz respeito aos princípios e limites da racionalidade penal.

O problema, porém, é que conforme já se mencionou acima, a dita internacionalização não se faz muitas vezes através dos mecanismos de diálogo e harmonização apropriados.

Ocorre uma mera tentativa de nacionalizar um “produto” feito sob a égide da discussão de um sistema que por natureza não possui as mesmas características que o nosso, por mais semelhantes que sejam.

No final das contas, há de fato uma real falta de legitimidade nesta apropriação doutrinária sem diálogo, resultando numa das piores formas de atividade legiferante praticadas pelo poder judiciário, conforme também leciona o Prof. Voge da Universidade alemã de Tübingen:

Sin embargo, se presentan serios problemas cuando la «internacionalización» ha llevado a la «importación» de elementos sistemáticos que son legítimos y funcionales en un ordenamiento jurídico penal específico, pero que conducen a resultados ilegítimos y disfuncionales en otro.

Se observa no Brasil a utilização de teorias em discussão no exterior como argumento de poder ou como forma de obtenção de certo status, manifestada na fala de magistrados, advogados e até professores de direito penal, sem qualquer preocupação séria com a delimitação da forma de aplicação destas teorias e muitas vezes em desrespeito aos limites já discutidos no país de origem destas.

Diante desse quadro é fundamental que aqueles que pretendem estudar seriamente a dogmática penal e todas as suas correlações disciplinares assumam o compromisso de não reproduzir esse discurso de bajulação do que se produz em outros países. Diálogo, aprendizagem, cooperação internacional sim. Consumo desenfreado de teorias enlatadas – não.


NOTAS

[1] Pretendo, num escrito posterior, falar sobre a expansão da figura de garante no direito penal no contexto das sociedades de risco. Argumentações como as mencionadas caminham para uma distribuição de imputação penal que pretende abarcar, se não todas, a maioria das ações humanas, numa tentativa fútil de compensar a estruturação criadora de riscos operada pela lógica do neo-liberalismo.

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Autor: Paulo Incott

Fonte: https://canalcienciascriminais.com.br/

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