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As dimensões da expansão do Direito Penal

A expansão do direito penal se caracteriza pela criação legislativa de novos tipos penais, que apresenta como objetivo declarado a proteção de bens jurídicos coletivos, dos quais somente nessa época se reconhece a importância da tutela por meio do direito penal, como tipos penais destinados à proteção ambiental e do sistema econômico. Ademais, para prevenção desse tipo de criminalidade se faz uso de normas mandamentais, outra característica da expansão[1].

Este acontecimento deixa de ser apenas objeto de descrição por parte da ciência, e passa a ser encarado como algo preocupante, que deve ser objeto de crítica, pois retira uma das principais características do direito penal iluminista: em vez de o direito penal ser a ultima ratio do Estado para a proteção de bens jurídicos, torna-se o principal e mais utilizado instrumento de gestão de problemas sociais.

Dentro desse fenômeno, o que se percebe é uma progressiva diluição dos limites entre o direito penal e o direito administrativo em geral (sancionatório e de prevenção de perigos). Torna-se cada vez mais difícil determinar distinções teóricas entre esses ramos do ordenamento jurídico, pois ambos se concentram em sua função preventiva.

Silva Sánchez tem chamado esse processo de “administrativização do direito penal” (SILVA SÁNCHEZ, 2006, p. 131), e entende que se trata de um dos principais problemas da política criminal contemporânea, pois se pode afirmar que, nas sociedades pós-industriais, uma característica do direito penal é assumir a forma de raciocínio do direito administrativo. É isto que se quer afirmar quando se refere à “administrativização” em que está imerso o direito penal contemporâneo. Mais que isso: além de utilizar o tipo de raciocínio próprio do direito administrativo, o direito penal transformou-se em um direito de gestão ordinária de problemas sociais (SILVA SÁNCHEZ, 2006, p. 142).

A expansão do direito penal provoca uma série de importantes consequências político-criminais que, em síntese, alcançam basicamente dois pontos:

a) o legislador penal elabora novos tipos penais com os quais se ocupa de novos âmbitos dos quais apenas se ocupava o direito administrativo (mais precisamente em matéria sócio-econômica). Caracteriza-se pela tutela de bens jurídicos coletivos e funções estatais, bem como pela antecipação da tutela penal, mediante a elaboração de crimes de perigo abstrato e crimes de acumulação. Insere-se, na maioria dos ordenamentos jurídicos, a previsão legal de responsabilização penal de pessoas jurídicas[2]. Além disso, no processo penal, verifica-se uma crescente flexibilização de sua forma, principalmente pela inserção do critério da oportunidade, como manifestação da mitigação do princípio da obrigatoriedade da ação penal, bem como de diversas outras manifestações de restrições ao direito de defesa.

b) Numa segunda manifestação do expansionismo penal, ele deixa de se referir às novas formas de criminalidade (sócio-econômica), características da denominada sociedade de risco. As novas formas de criminalidade, típicas da classe alta, ocupam um lugar secundário no funcionamento do sistema de justiça criminal. Além de uma expansão extensiva do direito penal (aumento, em números absolutos, de tipos penais), verifica-se uma expansão intensiva: as decisões político-criminais concentram seus esforços no recrudescimento da punição de alguns tipos de crimes desde há muito previstos pelo direito penal clássico. Em outras palavras: essa outra manifestação da expansão do direito penal continua o perene projeto de criminalização de pessoas disfuncionais à sociedade capitalista. O centro da atividade policial se concentra sobre a criminalidade de rua: furtos, roubos e tráfico de entorpecentes. Nenhum desses crimes pode ser entendido como consequência da chamada sociedade de risco (Beck), muito menos como crimes que sejam realizados por setores privilegiados da sociedade. Levando em consideração que por meio das funções ideológicas da pena (intimidação e ressocialização) o direito penal nunca conseguiu controlar a criminalidade, apela-se para suas funções tecnocráticas, de neutralização (prevenção especial negativa) e de reforço simbólico da ordem jurídica (prevenção geral positiva). O reconhecimento de que a sociedade apresenta alto nível de medo da criminalidade, e de que a pena não é apta para o controle de referido fenômeno, faz com que programas políticos invistam em medidas dirigidas a acalmar o medo social, apaziguar sua agressividade ou satisfazer, em geral, suas pulsões psicossociais (DÍEZ RIPOLLÉZ, 2007, p. 157). A pena se transforma num instrumento de gestão simbólica da criminalidade como um grande risco social. Destacam-se como fenômenos perceptíveis, sem muito esforço de análise, o superencarceramento e a utilização descontrolada de penas restritivas de direitos. Além disso, a constante violação de direitos fundamentais provocada pelo chamado direito penal do inimigo.

Ademais, como projeto de controle social da pobreza, desloca-se o objeto de preocupação da criminologia: dos fins da pena para a política criminal como um todo, ou seja, com o objetivo de realizar o controle social dos não-consumidores (não funcionais à sociedade de consumo), desenvolve-se uma política criminal atuarial, que tem como objeto não mais pessoas perigosas, mas sim grupos que apresentam determinado nível de risco social (PAVARINI, 2006, p. 215 e ss).


REFERÊNCIAS

DÍEZ RIPOLLÉZ, José Luís. La política criminal en la encrucijada. Montevideo-Buenos Aires: B de F, 2007.

PAVARINI, Massimo. Un arte abyecto. Ensayo sobre el gobierno de la penalidade. Buenos Aires: Ad-Hoc, 2006.

SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María. La expansión del derecho penal: aspectos de la política criminal en las sociedades postindustriales. 2. ed. (reimpressão), Montevideo-Buenos Aires: Editorial B de F, 2006.

TAVARES, Juarez. Teoria dos crimes omissivos. São Paulo: Marcial Pons, 2012.


NOTAS

[1] Embora não se ignore que a existência de tipos omissivos e da tutela de bens jurídicos coletivos seja anterior ao período de expansão do direito penal, assim como a existência de tipos de perigo, o que se quer afirmar é a intensificação no uso dessa técnica legislativa no direito penal contemporâneo. Sobre a relação entre a expansão do direito penal e a utilização de tipos omissivos, ver TAVARES, Juarez. Teoria dos crimes omissivos. São Paulo: Marcial Pons, 2012. p. 40 e ss.

[2] Da mesma forma que a existência de tipos de perigo abstrato e tipos omissivos precede a expansão do direito penal, a responsabilidade penal da pessoa jurídica também é anterior ao fenômeno da expansão do direito penal. Mas essa constatação não desqualifica a afirmação de que a responsabilização penal de entes coletivos é uma das características do direito penal contemporâneo. A discussão sobre os aspectos positivos e negativos da responsabilidade penal da pessoa jurídica poderia ser objeto de outro artigo. De qualquer forma, o argumento de que seria injusto um sistema penal em que a pessoa jurídica só pode ser tutelada, mas não responsabilizada, não responde a questionamentos que devem ser anteriores à pergunta sobre a necessidade de que tipo de comportamento punir ou quem punir. O reconhecimento da necessidade de responsabilidade penal da pessoa jurídica pressupõe uma postura de quem acredita no direito penal como um instrumento de controle social adequado a proteger os interesses sociais. A partir desse pressuposto, talvez, a defesa de referida responsabilidade penal tenha sentido. No entanto, este artigo apresenta um pressuposto contrário: o de quem, por influência dos desenvolvimentos da criminologia crítica, desacredita por completo numa função instrumental positiva em relação ao poder punitivo.

Autor: Fábio da Silva Bozza

Fonte: https://canalcienciascriminais.com.br/

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