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O que é isto – o Sistema Penal?

Proposta de exercício filosófico: imagine que um habitante de outro planeta viesse ao nosso simpático planeta azul e aprendesse, como início de sua experiência com a nossa linguagem, a expressão sistema penal.

Ao perguntar para você o significado da expressão, o que você diria?

Acrescentemos um ingrediente ao desafio. A resposta precisaria dar conta, do modo mais imparcial possível (o maior distanciamento ideológico possível) de todo o fenômeno sobre o qual o sistema penal se projeta.

A resposta precisaria ainda ser fornecida em poucas palavras – nosso amigo extraterrestre não se mostra muito afeto a longas digressões.

Para dar conta do desafio, um primeiro ensaio de resposta iniciaria dizendo que o sistema penal é composto por um conjunto de normas….

Já de início um obstáculo intransponível: explicar o sistema penal a partir do arcabouço normativo não é honesto, uma vez que não elucida seu real funcionamento.

É facilmente perceptível que este não se traduz na efetivação das normas. Para ficar com um exemplo simples basta verificar (quase) qualquer cânone da Lei de Execução Penal.

Tentar definir o sistema penal com fundamento em sua codificação enfrenta também o problema de deixar de fora a práxis das agências de repressão, que praticam aquilo que ficou concebido com um “direito penal subterrâneo” (2017, p. 51).

Ainda comentando a disparidade entre a construção normativa e a concretização do sistema penal ZAFFARONI (1991, p. 27) comenta:

“A seletividade estrutural do sistema penal – que só pode exercer seu poder regressivo legal em um número insignificante de hipóteses de intervenção planificadas – é a mais elementar demonstração da falsidade da legalidade processual proclamada pelo discurso jurídico-penal. Os órgãos executivos têm “espaço legal” para exercer poder repressivo sobre qualquer habitante, mas operam quando e contra quem decidem.”

Assim, com o intuito de fornecer uma resposta que se adeque ao primado de imparcialidade não poderíamos tentar descrever o sistema penal com base nas normas que o legitimam.

Uma outra tentativa seria partir da construção doutrinária fundamentada nas funções autênticas da pena. Uma possível definição com este viés seria:

“O sistema penal é um aparato derivado do direito de soberania do Estado voltado para consumação da paz social através do uso de medidas repressivas na forma de ameaça ou de sanção à prática de um crime.”

À primeira vista a definição parece conseguir dar uma visão realista e dotada da completude desejada.

Evita o problema observado na primeira tentativa por não restringir o funcionamento do sistema penal a um conjunto de normas, demonstrando-o como uma ferramenta voltada a um fim social e retratando de forma direta seu instrumental – a repressão.

Há, porém, uma deficiência. Quando diz que as medidas repressivas se voltam para o “crime” a definição peca por não permitir a compreensão de quais as práticas são de fato abrangidas por estas medidas.

O que é crime? O próprio código penal não o define explicitamente. Ainda que se procure substituir, na definição fornecida, a palavra crime por seu conceito analítico (conduta humana típica, antijurídica e culpável) isso não poderia ser considerado uma “definição”.

Relacionar todas as peças de um carro, partindo das maiores como o motor e as engrenagens até descrever seus pequenos parafusos e dobradiças não nos serve para dizer o que “é” um carro.

Sem adentrar a profícua discussão entre essência e aparência ou sobre a linguagem como condição de possibilidade para o conhecimento (o que seria um prazer, mas o espaço não permite) é simples perceber que a “definição” do que vem a ser um carro não se faz com esta listagem, mas por se dizer (entre outras opções) que um carro é um “veículo sobre rodas destinado a transportar pessoas ou objetos”.

O problema é que com o significante “crime” não temos a mesma facilidade. Não se trata de um conceito que pode ser compreendido “de imediato”, partindo de um consenso compartilhado, porque a “definição” vai depender de seu apoio nas normas. Crime será considerado o que for contrário às normas.

Como já mencionado ao enfrentarmos a primeira definição, porém, as normas positivadas não podem servir de referencial seguro para compreendermos o sistema penal em sua magnitude e real operacionalidade.

Percebe o leitor o labirinto semântico? Explicitado em outras palavras a partir da lição de ZAFFARONI (1991, p. 246 – 247):

“‘O’ delito não existe. […] é claro que este conceito jurídico de delito nada mais é que a síntese de requisitos que devem estar presentes em qualquer ação conflituosa de um autor selecionado pelo poder do sistema penal, para que a agência judicial responda afirmativamente quanto ao prosseguimento do processo de criminalização já em curso. Parece-nos claro que um conjunto de requisitos não chega a constituir um conceito…”

O problema não se limita a palavras e teorias. Deseja-se fornecer ao nosso visitante uma informação o mais próximo possível de um conceito ajustado à realidade.

Faremos uma última tentativa, com a seguinte definição:

“O sistema penal é uma estrutura de concretização de ações violentas dadas em resposta a uma conduta tida como insuportável pela sociedade em que esta foi perpetrada.”

Em que pese algumas imperfeições parece ser a resposta mais sincera e coerente possível, dispondo-se de poucas palavras. Analisemos analiticamente a definição:

1. “O sistema penal é uma estrutura (…)”

Sim. Não se trata simplesmente de um conjunto de normas, nem mesmo de um apanhado de teorias. Compõe-se de todo um instrumental, que passa pelo judiciário, pelas agências de repressão, pelas instituições prisionais, etc.

2. “(…) de concretização de ações violentas (…)”

A incidência do sistema penal sempre se dá de forma violenta. Não se trata de uma adjetivação valorativa, mas sim de uma constatação: a forma de operação do sistema penal traduz uma ação truculenta.

3. “(…) dadas em resposta a uma conduta tida como insuportável pela sociedade esta foi perpetrada.”

A entrada em ação do sistema penal volta-se como último recurso (também aqui caberia certa crítica quanto a se ela atua realmente como ultima ratio ou como prima ratio em alguns casos, mas deixaremos esta crítica de lado) para coibir ou retribuir uma conduta humana que a sociedade na qual o sistema penal está operando não tolera.

Esse ponto é relevante porque muitas das condutas que em determinada sociedade ou determino tempo são alvo do sistema penal em outras (os) não o são. Como exemplo, por longo período o adultério figurou no código penal brasileiro como conduta típica. Hoje isso seria completamente inaceitável.


Finalizando este pequeno projeto filosófico de captura de sentido cabe aqui explicar o que se pretendeu com o mesmo. Não se teve por objetivo oferecer de fato uma definição dogmática do que é o sistema penal. Sabe-se que mesmo esta última definição contém pontos objetáveis ou brechas.

O verdadeiro propósito foi chamar atenção, partindo de um lugar de fala diversificado, um tanto lúdico, para aquilo que forma um dos objetos de estudo da Criminologia Crítica.

A dificuldade encontrada em oferecer ao nosso visitante um conceito concreto de sistema penal demonstra algo que serve de paradigma para o modo como a Criminologia Crítica procura se aproximar de uma de suas frentes de estudo; não se permitindo partir daquilo que está posto. Afinal, o sistema penal não existe em si e por si.

Ele foi “fabricado”. O segredo em não se “acomodar” com ele e seus conhecidos desequilíbrios e injustiças reside justamente em encará-lo “desconfiadamente”. Não o aceitar como definitivo, finalizado e inegociável.

A atitude do filósofo, do sociólogo ou de quem quer que deseje estudar as estruturas sociais deve ser primordialmente a da suspeita diante dos conceitos prontos. Só assim poderemos percorrer um caminho teórico e prático diferenciado, apto a produzir melhores resultados.

Última provocação: imagine se nosso turista extraterrestre decidisse perguntar em seguida o que significa a Constituição Federal? Melhor deixe.


REFERÊNCIAS

ZAFFARONI, E. Raul. Em busca das penas perdidas: a perda da legitimidade do sistema penal. Rio de Janeiro: Revan, 1991.

Autor: Paulo Incott

Fonte: https://canalcienciascriminais.com.br

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