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A falácia do in dubio pro societate e o conflito com os direitos fundamentais

In dubio societate e o conflito com os direitos fundamentais.

Não é raro se deparar, no dia a dia dos egrégios fóruns e tribunais, com decisões de juízes criminais que invocam a aplicação do famigerado “postulado” do in dubio pro societate. Trata-se de “princípio” costumeiramente aventado em dois momentos no processo penal: 1- no ato de recebimento da denúncia criminal; e 2- na primeira fase do rito do Tribunal do Júri, denominada de judicium accusationis, para o fim de submeter o acusado a julgamento popular.

Pois bem.

A corrente (amplamente dominante) – acomodada no acrítico campo do repouso dogmático – que sustenta a aplicabilidade deste “princípio” parte do raciocínio de que nestes dois momentos – recebimento da denúncia e (im)pronúncia do réu – deve prevalecer “a segurança social”, de modo que a dúvida razoável não é interpretada em favor do increpado e de sua inocência, como determina a Constituição Federal, em norma tutelada a título de cláusula pétrea (arts. 5º, LVII, e 60, §4º, inciso IV), e o Pacto de São José da Costa Rica (art. 8.2), senão “ponderada” em “prol” da sociedade, autorizando, assim, a existência de um processo penal ou a submissão do caso a julgamento pelo Conselho de Sentença.

Não obstante se tratar de entendimento consolidado pela jurisprudência pátria, partindo-se de uma leitura constitucional e convencional do processo penal, como propõe Aury Lopes Jr. (2013), percebe-se não somente a inconstitucionalidade deste posicionamento, como também a existência de incongruência no seu próprio discurso legitimador.

Não seria exagero afirmar que ninguém nunca soube dizer onde estaria previsto o princípio in dubio pro societate no ordenamento jurídico brasileiro. Na grande maioria das vezes se sustenta que o art. 5º, caput, da Carta Política de 1988, ao consagrar a segurança como um direito fundamental, autorizaria a “aplicação” (na verdade, criação) deste “preceito”.

Ou seja: o in dubio pro societate não é outra coisa, senão um criacionismo derivado do livre, (in)conveniente e (in)oportuno decisionismo judicial, que, numa interpretação exorbitante, olvidou – e se olvida cotidianamente – dos limites interpretativos impostos pelo texto constitucional.

Mas isso, no Brasil, não é de causar surpresa, já que se operou, de há muito tempo, uma “administrativização do processo penal”, vale dizer, a lei – sempre em prejuízo do réu! – é invertida, transmutada ou simplesmente ignorada, como se houve discricionariedade e conveniência na aplicação dela.

Ainda, há que se somar a circunstância de que as nulidades, oriundas da inobservância da lei, para a defesa, são sempre relativas, e o réu, massacrado, que sequer voz tem no processo criminal, deve comprovar a ocorrência de prejuízo. Se não provar, a inversão e o desrespeito a lei são válidos…

Simples assim! Sequer a decência e a razoabilidade se tem, em terrae brasilis, de aplicar o lógico raciocínio de que quem postula a inversão da regra ou a sua inobservância é que deveria comprovar que tal conduta – manifestamente inadmissível e ilegal per si – não acarretaria nenhum prejuízo ao acusado…!

Voltando ao cerne da questão, não é somente a inexistência de previsão legal, quer na Constituição Federal, quer no Código de Processo Penal, do “princípio” in dubio pro societate que demonstra a inviabilidade (por inconstitucionalidade e ilegalidade) da incidência desse “postulado”.

A incongruência se encontra no próprio discurso legitimador.

Eis – outro! – ponto nevrálgico: desde quando o massacre do réu, isto é, a valoração da dúvida em seu prejuízo, para submetê-lo ao processo penal ou a julgamento pelo Tribunal do Júri, significa proteger a sociedade e atender aos interesses sociais?

A resposta, numa interpretação lúcida, só pode ser a contrario sensu ao raciocínio dos que sustentam a aplicabilidade desse “princípio”.

Se o processo penal, nas palavras de Aury Lopes Jr. (2013, p. 59), deve ser visualizado como um “instrumento de efetivação das garantias fundamentais”, uma vez que, consoante Juarez Tavares (Apud LOPES JR., 2013, p. 60), “a garantia e o exercício da liberdade individual não necessitam de qualquer legitimação, em face de sua evidência”, porquanto, “o que necessita de legitimação é o poder de punir do Estado, e esta legitimação não pode resultar de que ao Estado se lhe reserve o direito de intervenção”, inconcebível que nos dois momentos processuais acima mencionados – recebimento da denúncia e (im)pronúncia – o direito fundamental da presunção da inocência seja transmutado em presunção da culpabilidade e, por conseguinte, que a dúvida seja interpretada de modo prejudicial ao réu, em detrimento dos vetustos postulados do in dubio pro reo e favor rei.

Mister consignar, neste diapasão, que os direitos e garantias constitucionais foram insculpidos, justamente, após a trágica experiência da ditadura militar ocorrida no Brasil e sofreram inegáveis influências, também, da Declaração Universal de Direitos Humanos de 1948, que surgiu, segundo Flávia Piovesan (2013), logo após ao fim da segunda guerra mundial com o objetivo de exteriorizar os valores humanos mais relevantes, a serem observados internacionalmente.

Pode-se afirmar, portanto, que os verdadeiros interesses e valores de uma sociedade decorrem de seus textos políticos mais importantes.

Nesta senda, se o escopo do in dubio pro societate é dar prevalência à interpretação que satisfaça aos interesses da sociedade, inviável outra solução que não a observância dos princípios da não culpabilidade, do in dubio pro reo e do favor rei nos atos decisórios em testilha, afinal, o desrespeito aos direitos e garantias essenciais do cidadão-perseguido criminalmente só pode denotar interpretação prejudicial à própria sociedade, porquanto a mensagem que se passa é a de que não assegurará o Estado um julgamento justo, pautado por diretrizes democráticas e legais.

E, diante desse quadro, não se pode admitir a invocação do in dubio pro societate no processo penal brasileiro, que, por não encontrar previsão legal, não passa de uma falácia. Falácia esta que, em contrapartida, derrogou direitos basilares de todos (a presunção de inocência, por exemplo), estampados não apenas na Constituição Federal (art. 5º, LVII) e no Pacto de São José da Costa Rica (art. 8. 2), como também na Declaração Universal de Direitos Humanos (art. 11,1), razão pela qual, aliás, não seria demais concluir que se tratam de normas jus cogens, porquanto se enquadram entre os valores mais relevantes a serem respeitados no mundo inteiro.

Portanto, chega-se a três conclusões fundamentais:

1. O princípio do in dubio pro societate não é previsto na ordem jurídica pátria, sendo invocado como argumento autoritário para restringir direitos e garantias;

2. Nos moldes em que sustentada à aplicação do in dubio pro societate, a sua incidência é mais prejudicial do que benéfica à sociedade; e

3. Os direitos humanos e fundamentais não necessitam de legitimação pelo Estado (são normas de aplicação imediata), razão pela qual o processo penal deve ser compreendido como um instrumento de garantia e não de perseguição (LOPES JR., 2013), de forma que o poder punitivo só se legitima quando observados os direitos e garantias essenciais. Disso, novamente, se evidencia a ilegitimidade da invocação do in dubio pro societate para suprimir direitos e garantias individuais.


REFERÊNCIAS

LOPES JR., Aury. Direito processual penal. – 10. ed. – São Paulo: Saraiva, 2013.

PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. – 14. ed., rev. e atual. – São Paulo: Saraiva, 2013.

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Autor: Guilherme Kuhn

Fonte: https://canalcienciascriminais.com.br/

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