TRF-1 – APELAÇÃO CRIMINAL : ACR 242363620004013400 DF 0024236-36.2000.4.01.3400
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STF absolve condenado pelo STJ por portar munição como pingente de colar

Por portar uma munição proibida como pingente de colar um cidadão (tratado, na verdade, como sub-cidadão), foi condenado (art. 16 da Lei 10.826/03) ao cumprimento da pena de três anos de reclusão, em regime inicial aberto, tendo o castigo penal sido substituído por duas penas restritivas de direitos. Decisões como essa evidenciam que aplicar a maquinaria pesada do direito penal equivocadamente é uma arma mais perigosa que a própria arma de fogo desmuniciada ou do que o porte da munição desarmada.

Por que aberrações como essas acontecem com frequência no nosso ordenamento jurídico? Há as explicações políticas (históricas, econômicas, sociológicas) e existem também as explicações jurídicas.

Explicações jurídicas

O pingente gerou condenação criminal em primeira instância (uma comarca em MG), absolvição no TJ-MG e condenação no STJ. A decisão desarrazoada e descomedida do STJ foi reformada pelo STF (em 17/5/16 – Habeas Corpus 133.984), acertadamente, sendo relatora a ministra Cármen Lúcia. Com tantas denúncias da Lava Jato pendentes de recebimento, novamente foi necessário gastar o tempo dos ministros do STF (2ª Turma) para reparar a injustiça praticada pelo STJ (e, anteriormente, pelo juiz de primeiro grau).

Esse tipo de equivoco medonho que vem sendo cometido por alguns juízes do país (no caso: juiz de 1º grau e STJ) decorre de dois motivos: (1) da leitura seca da lei (= positivismo jurídico legalista, anterior ao neoconstitucionalismo pós 2ª Guerra Mundial, que foi estruturado para evitar absurdos na aplicação das leis assim como as atrocidades da primeira metade do século XX); (2) da falta de atualização dogmática, que hoje diferencia nitidamente o crime de perigo abstrato presumido (totalmente inconstitucional) do crime de perigo abstrato de perigosidade real, que é o limite máximo da antecipação da tutela penal – leia-se, daVorfeldkriminalisierung (veja nosso livro Lei Seca – Saraiva, assim como Direito Penal-PG, Juspodivm).

Entre a letra da lei e a existência de um crime está aconstituição assim como a dogmática penal (que fala em tipicidade, antijuridicidade e punibilidade – como ameaça de pena). A tipicidade, por seu turno, possui três dimensões: formal, material e dolo ou culpa. Todos esses filtros são relevantes e não foram inventados por mero deleite. Quem atabalhoadamente confunde a letra da lei (seca) com a configuração do crime ingressa, frequentemente, no chamadodireito penal máximo (que é expressão do direito penal do inimigo de Jakobs, que tem antecedente histórico no nazismo de Hitler); o correto é o direito penal constitucional máximo (que é o direito penal que pune o agente do crime na medida da sua culpabilidade consoante os limites constitucionais).

No caso do porte ilegal de munição (de uso permitido ou de uso ilícito), para além desse fato objetivo que deve ser comprovado (e que está descrito na lei), o fundamental é também comprovar a disponibilidade de uso da munição (ou, quando o caso, da arma). Não é preciso dar tiro em ninguém, não é necessário haver disparo (porque não se trata de perigo concreto), sim, só é imprescindível que o objeto tenha disponibilidade de uso pelo agente no contexto fático em que ele se encontrava.

Do contrário, mesmo quando se trata de arma quebrada, fora de uso, totalmente impossibilitada para disparo, haveria crime. A arma quebrada e um pedaço de tijolo não teria nenhuma diferença para o efeito do crime de portar arma de fogo (não estou falando da eficácia intimidativa, que é outra coisa – e existe, mesmo no caso de arma quebrada ou desmuniciada). Se a arma quebrada (sem chance de uso, sem capacidade de disparo) constitui o crime de porte ilegal de arma de fogo, dentro de pouco o legislador vai criminalizar também o porte de tijolo, de ferro, de concreto etc.

A disponibilidade de uso da munição (ou da arma, quando o caso) se chama perigo abstrato de perigosidade real, ou seja, há um mínimo de perigosidade real (efetiva) na conduta do agente que porta uma munição com possibilidade concreta de uso (facilidade de acesso a uma arma de fogo). O mesmo raciocínio é feito em relação à posse de arma sem munição: tudo é regido pelo princípio da disponibilidade de uso (conforme julgados do STF: HC 81.057-SP e RHC 90.197).

Aplicar o texto legal secamente, sem levar em conta princípios constitucionais relevantes (razoabilidade, ofensividade, subsidiariedade etc.), é fazer do direito penal uma arma mais perigosa que a própria arma de fogo desmuniciada ou do que o porte da munição desarmada. A munição desarmada, usada como pingente, jamais colocará em risco qualquer pessoa. A arma do direito penal mal usada leva as pessoas para a cadeia. Pode-se afirmar que o uso de projétil como pingente seja algo de mau-gosto. Mas, mau-gosto não é delito.

É muito grave quando o usuário da arma legal (o juiz) não está (no momento da aplicação da lei) com boa pontaria. O perigo, nesse caso (atirador sem boa pontaria), é abstrato e presumido para os súditos (por não utilizar o juiz os instrumentos técnicos desenvolvidos pela dogmática assim como pela mais lúcida jurisprudência do STF).

Se o juiz não está dogmática e/ou jurisprudencialmente bem habilitado ou familiarizado com a dimensão material da tipicidade decorrente do princípio da ofensividade (ver Luiz Flávio Gomes), da teoria da imputação objetiva de Roxin e da teoria da tipicidade conglobante de Zaffaroni, o uso da arma mais drástica que existe nas mãos do Estado (o direito penal) passa a ser revestido de alto risco para a população, posto que o juiz pode sair por aí efetuando disparos a esmo, que no caso são convertidos em anos e anos de cadeia, sem fazer as distinções e ponderações que sublinhamos acima. Simão Bacamarte, deverasmente semelhantemente, mandava todo mundo para o hospício. E sabemos o que ocorreu com ele no final.

A decisão do STJ (condenatória – três anos de cadeia pelo pingente) foi reformada no STF. Em seu voto, a ministra Cármen Lúcia disse não desconhecer a jurisprudência do Supremo sobre o delito de porte de munição (a jurisprudência majoritária perigosista e fundamentalista do STJ e do STF é no sentido condenatório: STJ, HC 322.876/MS, Quinta Turma, rel. Min. Reynado Soares da Fonseca, j. 05.04.2016, DJe 13.04.2016; STJ, HC 338.677/RS, Sexta Turma, rel. Min. Ericson Maranho, j. 23.02.2016, DJe 03.03.2016; STJ, HC 203.019/SP, Sexta Turma, rel. Min. Nefi Cordeiro, j. 27.10.2015, DJe 16.11.2015; STF, RHC 128.722, Segunda Turma, rel. Min. Dias Toffoli, j. 22.09.2015, DJe-210 DIVULG 20-10-2015 PUBLIC 21-10-2015; STF, RHC 128.281/SP, Segunda Turma, rel. Min. Teori Zavascki, j. 04.08.2015, DJe-167 DIVULG 25-08-2015 PUBLIC 26-08-2015).

Mas nesse caso, frisou a relatora, nem se pode cogitar de perigo abstrato nem de perigo concreto. Ao conceder a ordem de habeas corpus, a ministra disse considerar, contudo, que o jovem não devia ter feito pingente “com uma bobagem dessas”. Sensibilidade ética, acima de tudo (é o que se vê na decisão). Traduzindo tudo: a ministra não vislumbrou o perigo abstrato de perigosidade real, que é o mínimo exigido pelo direito penal da ofensividade para o reconhecimento de um delito. O crime não é mera desobediência à norma (assim foi no nazismo). Como a norma é valorativa, só existe crime quando a conduta viola o valor protegido pela norma penal (o bem jurídico). Se a conduta não colocou objetivamente em risco o bem jurídico protegido, não há crime (mesmo que formalmente típica). Não há aqui a tipicidade material (tudo como acontece com o princípio da insignificância). Viva os juízes de Berlim!

Explicações políticas

A aplicação arbitrária (descomedida, desarrazoada) dos castigos penais (contra quem quer que seja) significa poderes com ausência de limites, que é coisa típica dos países fracassados, dotados de instituições econômicas extrativistas (saqueadoras, extremamente desiguais), que se valem da corrupção como ponte (corrupção em sentido lato, de estragar, de danificar, de degenerar) para estimular a existência de instituições políticas, jurídicas e sociais favoráveis à preservação da desigualdade, da extrema pobreza, da concentração da riqueza de um país nas mãos de poucos, da desigualdade educacional, emocional, de renda, de patrimônio, de relações sociais etc. As instituições políticas, jurídicas e sociais quando não inclusivas criam um círculo vicioso gerador do caos, que é a antessala do colapso: as instituições econômicas extrativistas favorecem a corrupção das demais instituições que estimulam os desvalores das primeiras: desigualdade, miséria, oportunidades diferenciadas, capitais distintos, tratamentos diferenciados etc. As últimas criam forças poderosas em direção à manutenção das instituições extrativistas. Esse círculo vicioso não é determinista, não existe para sempre, mas é muito resistente.

O que o círculo vicioso gera para a nação é um “feedback negativo”: “as instituições políticas [jurídicas e sociais] forjam [ou perpetuam] suas contrapartes econômicas, as quais por sua vez fornecem a base [por meio da corrupção] para a persistência das primeiras”.[1] Em todos os países colonizados, uma elite (uma oligarquia = domínio de poucos) permaneceu no poder no período colonial e assim prosseguiu depois da independência da nação. A riqueza (concentrada) dessas elites (oligarquias) se deve às instituições econômicas extrativistas (saqueadoras), que são duradouras, até que encontrem resistência. As revoluções inglesa (1688) e francesa (1789) constituem exemplos históricos de mudança de rumos (ou seja: da passagem das instituições extrativistas para as inclusivas). Isso explica a prosperidade desses dois países. Onde as instituições econômicas extrativistas não foram rompidas, o que se vê é o fracasso e o persistente enriquecimento das oligarquias (elites) e precisamente essa riqueza constitui a base da continuidade do seu domínio (frente a todas as demais instituições).

 

Fonte Matéria: Professor LFG

Fonte Imagem: Jusbrasil

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